O café em doses únicas, a ciência e o meio ambiente...
No banco dos acusados, as cápsulas de café. |
Somos frequentemente enganados por nossas próprias percepções. É verdade na área ambiental, especialmente com embalagens. E um excelente exemplo disso são as cápsulas de café.
Mesmo se geram mais resíduos sólidos no ponto de consumo, as cápsulas costumam trazer ganhos ambientais sobre o café coado.
Quanto aos resíduos de cápsulas, representam impactos modestos. E a sua simples disposição em aterro pode fazer mais sentido do que a sua reciclagem.
Tudo isso pode parecer curioso. Merece explicações.
Mesmo se geram mais resíduos sólidos no ponto de consumo, as cápsulas costumam trazer ganhos ambientais sobre o café coado.
Quanto aos resíduos de cápsulas, representam impactos modestos. E a sua simples disposição em aterro pode fazer mais sentido do que a sua reciclagem.
Tudo isso pode parecer curioso. Merece explicações.
1. O crescente fenômeno das cápsulas
Já faz alguns anos que o consumo de café em cápsulas não para de crescer. Cerca de 20% das famílias canadenses e americanas já possuem uma cafeteira expresso. E, mesmo se o crescimento parece ter atingido um pico nos EUA, as aquisições continuam.
O aumento do consumo de cápsulas impulsionará o mercado brasileiro |
No Brasil, dados de 2016 da Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC) indicam que, apesar de ainda representar muito pouco dos cerca de 5 kg de café torrado e moído consumidos anualmente por cada Brasileiro, o consumo de café em cápsulas deve aumentar mais de 150% de 2014 para 2019, alcançando cerca de 19 mil toneladas naquele ano, o equivalente a aproximadamente 5 milhões de pessoas consumindo uma cápsula por dia.
Este fenômeno das cápsulas iniciou com a classe mais rica dos países desenvolvidos. Agora, se estende para a classe média global. Aliás, abrange não somente todos os tipos de café (clássicos, extra fortes, gourmets, cappuccinos, descafeinados, etc.), mas também chocolates, chás e até refrigerantes. Neste artigo, no entanto, nos ateremos à questão do café.
Entretanto, vítimas do próprio sucesso, as cápsulas se tornaram também rapidamente alvo de críticas. Como qualquer bem de consumo diário, geram resíduos diários. E estes resíduos pós-consumo de cápsula são geralmente apontados como um grave problema ambiental.
Nos EUA, por exemplo, um movimento chamado Kill the K-Cup (Keurig é líder americano em cápsulas com a K-Cup), produziu um vídeo de 2 min intitulado Kill the K-Cup before it Kills our Planet, algo como 'Mate a Cápsula Antes que Mate o Nosso Planeta'.
Este fenômeno das cápsulas iniciou com a classe mais rica dos países desenvolvidos. Agora, se estende para a classe média global. Aliás, abrange não somente todos os tipos de café (clássicos, extra fortes, gourmets, cappuccinos, descafeinados, etc.), mas também chocolates, chás e até refrigerantes. Neste artigo, no entanto, nos ateremos à questão do café.
Entretanto, vítimas do próprio sucesso, as cápsulas se tornaram também rapidamente alvo de críticas. Como qualquer bem de consumo diário, geram resíduos diários. E estes resíduos pós-consumo de cápsula são geralmente apontados como um grave problema ambiental.
Nos EUA, por exemplo, um movimento chamado Kill the K-Cup (Keurig é líder americano em cápsulas com a K-Cup), produziu um vídeo de 2 min intitulado Kill the K-Cup before it Kills our Planet, algo como 'Mate a Cápsula Antes que Mate o Nosso Planeta'.
No melhor estilo Independance Day, o pequeno filme mostra um gigante monstro cuspidor de cápsulas, um invencível Podzilla que invade e destroem a cidade, matando todos ao seu redor.
Matar as Cápsulas Antes que Matem o Nosso Planeta!?
Se este vídeo ganhou certa popularidade na internet, certamente foi mais pelo apelo emocional do que pelo embasamento técnico.
Na Europa, a ONG Zero Waste concedeu às cápsulas o seu 'bin again award', um tipo de premiação irônica e subjetiva concedida a resíduos que 'mais chegam à cesta do lixo'.
Na Europa, a ONG Zero Waste concedeu às cápsulas o seu 'bin again award', um tipo de premiação irônica e subjetiva concedida a resíduos que 'mais chegam à cesta do lixo'.
E recentemente, a cidade de Hamburgo até chegou a proibir as cápsulas em repartições públicas. Se o motivo for mesmo preservar o meio ambiente, e não chamar atenção e atrair votos com uma medida populista, por que então não proibir itens tão dispensáveis e muito mais prejudiciais, como, por exemplo, o consumo de carne, leite e queijo?
Na realidade, estas condenações são compreensíveis. Muito características pelo seu tamanho, cor e formato, muito visíveis, conspícuas, as cápsulas ainda demandam do consumidor um pequeno manuseio lúdico. Tudo isso as tornam naturalmente icônicas.
E como produto supérfluo de uma classe privilegiada, vestem à perfeição o papel de novo símbolo contra o consumismo, de novo anti-herói da sociedade de consumo. Enfim, constituem o perfeito bode expiatório para este sentimento de culpa geral com o meio ambiente.
O glamour das cápsulas ganhou um lado negro
É o caráter emocional e superficial destas críticas que fazem o seu poder de sedução e justificam em grande parte o seu apelo popular.
De fato, como muitos outros bens de consumo, as cápsulas de café geram resíduos sólidos urbanos com baixíssima reciclabilidade pós-consumo. Mas estes resíduos constituem apenas a parte emersa do iceberg. Para avaliar corretamente o caso ambiental das cápsulas, precisamos de mais recuo, mais objetividade, mais ciência.
2. A grave confusão entre sustentabilidade e gestão de resíduos
Já estamos acostumados a ler ou escutar 'sustentabilidade' usado no lugar de 'meio ambiente'. Pensamos 'sustentabilidade ambiental' e fechamos os olhos.
Mas confundir 'meio ambiente' e 'resíduos de embalagem', como neste artigo da Globo sobre a reciclagem das cápsulas de café no Brasil, é mais grave. Vindo de um jornalista leigo no assunto, o erro pode até ser perdoado. Mas não deveria ser aceito por parte de qualquer cientista ou profissional da área.
O equívoco, no entanto, segue muito fortemente enraizado na crença popular. Em um passado não tão distante, até alguns acadêmicos se deixavam iludir pelas 'sereias da reciclagem' (Williams, 2011).
Porém, o julgamento ambiental de uma embalagem não dever se fazer de acordo com a sua reciclabilidade pós-consumo. Não se pode confundir a restrita problemática da gestão dos resíduos de embalagem com os impactos ambientais de um sistema produto-embalagem.
A geração de resíduos em si só não constitui um impacto ambiental. Há de considerar dados, indicadores quantitativos como a emissões de gases de efeito estufa ou a ocupação do solo.
3. A eminente necessidade de pensar o ciclo de vida
Para realizar uma avaliação ambiental correta de qualquer produto, não se pode avaliar apenas o produto final, e ainda menos apenas o seu resíduo. Há de considerar a sua história completa.
No caso do café, isso abrange desde a sua produção agrícola até o descarte da sua embalagem e da sua borra, passando pelo seu processamento industrial, as suas várias etapas de transporte e o seu modo de preparo.
É preciso entender e avaliar o ciclo de vida inteiro do sistema produto-embalagem. Até elementos como a produção da cafeteira e o seu desempenho energético ou a fabricação da xícara e a sua lavagem não deveriam ser omitidos.
Já vale citar o excelente estudo de 2009 sobre embalagens de café realizado por Büsser e Jungbluth e publicado em renomada revista internacional, estudo ao qual voltaremos em breve:
No caso do café, isso abrange desde a sua produção agrícola até o descarte da sua embalagem e da sua borra, passando pelo seu processamento industrial, as suas várias etapas de transporte e o seu modo de preparo.
É preciso entender e avaliar o ciclo de vida inteiro do sistema produto-embalagem. Até elementos como a produção da cafeteira e o seu desempenho energético ou a fabricação da xícara e a sua lavagem não deveriam ser omitidos.
Já vale citar o excelente estudo de 2009 sobre embalagens de café realizado por Büsser e Jungbluth e publicado em renomada revista internacional, estudo ao qual voltaremos em breve:
«Embalagens facilitam a distribuição de bens à sociedade. Abordagens amplas, que abrangem o ciclo de vida dos produtos embalados, incluindo toda a cadeia de suprimento e o consumo dos produtos, são necessárias para obter a pegada ambiental.» (Büsser e Jungbluth, 2009, p. 80)
Em outras palavras, não há como avaliar ambientalmente uma embalagem de café sem avaliar em conjunto o seu produto.
E para fazer isso, não há melhor ferramenta que a Avaliação de Ciclo de Vida. O método da ACV consiste em levantar e quantificar rigorosamente todos os fluxos de entrada e saída de cada etapa do sistema. É trabalhoso e possui lá também as suas incertezas. Porém, é também muito proveitoso. Permite sair do achismo.
E para fazer isso, não há melhor ferramenta que a Avaliação de Ciclo de Vida. O método da ACV consiste em levantar e quantificar rigorosamente todos os fluxos de entrada e saída de cada etapa do sistema. É trabalhoso e possui lá também as suas incertezas. Porém, é também muito proveitoso. Permite sair do achismo.
4. Avaliações de ciclo de vida do café
Sem entrar em detalhes técnicos, vamos sobrevoar três das principais ACVs já realizadas sobre café. Cada um destes estudos é muito bem elaborado. Não faria sentido parafrasear. Assim, simplesmente traduziremos conclusões de destaque.
O primeiro estudo que citaremos foi realizado por um time de pesquisadores suíços, Humbert et al., e publicado em 2009 no Journal of Cleaner Production, uma das revistas científicas mais reconhecidas na área ambiental.
O segundo estudo já foi citado. Foi dirigido pela dupla de pesquisadores alemãos Sybille Büsser e Niels Jungbluth.
O terceiro foi contratado pela PAC, realizado pelo time canadense da Quantis e publicado online em 2015 sob o título "avaliação de ciclo de vida do consumo de café: comparação do café por dose único e da café coada". Trata-se provavelmente da mais completa ACV já realizada sobre o tema. Conduzida por uma das melhores consultorias especializadas, ainda foi revisada por um time de especialistas de três grandes instituições: Havard, Harmony Environmental e Triple Ten Consulting. Está disponível online na íntegra e só podemos recomendar uma leitura cuidadosa.
Apesar de contar com times diferentes, países diferentes e metodologias sensivelmente diferentes, estas três ACVs apresentam resultados não somente contra-intuitivos, mas também confortavelmente consistentes.
O terceiro foi contratado pela PAC, realizado pelo time canadense da Quantis e publicado online em 2015 sob o título "avaliação de ciclo de vida do consumo de café: comparação do café por dose único e da café coada". Trata-se provavelmente da mais completa ACV já realizada sobre o tema. Conduzida por uma das melhores consultorias especializadas, ainda foi revisada por um time de especialistas de três grandes instituições: Havard, Harmony Environmental e Triple Ten Consulting. Está disponível online na íntegra e só podemos recomendar uma leitura cuidadosa.
Apesar de contar com times diferentes, países diferentes e metodologias sensivelmente diferentes, estas três ACVs apresentam resultados não somente contra-intuitivos, mas também confortavelmente consistentes.
4.1. A ACV de Humbert et al.
"Poucos estudos analisaram em detalhe o ciclo de vida completo de um sistema com a função de servir uma xícara de café, e ainda menos ofereceram uma comparação entre diferentes alternativas".
"Este estudo mostra que é importante considerar o ciclo de vida inteiro, incluindo a fase de uso. De fato, etapas paralelas ou finais, como o aquecimento da água ou a lavagem do copo são frequentemente negligenciadas, o que, neste caso, omitiria até metade dos impactos."
"Uma xícara de café coada possui uma pegada ambiental maior que o café expresso em cápsula. [...] Embalagens não são um componente dominante."
"Uma xícara de café coada possui uma pegada ambiental maior que o café expresso em cápsula. [...] Embalagens não são um componente dominante."
"A primeira recomendação que pode ser feita a partir deste estudo é aumentar a consciência do consumidor sobre como pode influenciar positivamente o sistema. Se, por exemplo, em vez de ferver duas vezes a quantidade de água necessária, for ferver apenas o que precisa, já reduzirá em cerca de 15% os impactos ambientais da sua xícara."
"O consumidor pode também reduzir os impactos associados com a lavagem, reutilizando ou lavando o copo de forma eficiente, se possível com água fria, ou sem desperdiçar água quente ou utilizando o lava-louça de forma correta".
"Avaliar o ciclo de vida inteiro é necessário para:
- Obter uma pegada ambiental completa do sistema, tanto da fase de produção quanto de consumo;
- Evidenciar as responsabilidades de todos os atores na cadeia, como fornecedores, produtores e consumidores;
- Evitar problemas de transferência de impactos entre diferentes etapas do ciclo de vida, como, por exemplo, uma otimização da embalagem que acabe aumentando as perdas ao longo da cadeia ou o desperdício pelo consumidor."
4.2. A ACV de Büsser e Jungbluth
"Os aspectos ambientais mais relevantes de uma xícara de café são a sua preparação (o aquecimento da água) e a produção do café."
"A influência do descarte da embalagem de café é muito pequena devido à baixa influência geral da embalagem".
"O tipo de destinação dada às embalagens não tem praticamente nenhum impacto sobre os resultados".
"Em contraste, o comportamento na preparação do café é altamente relevante para os impactos ambientais de uma xícara, que seja preparada usando um bule ou uma máquina automática."
"Os desperdícios levam a um aumento significativo de todos os indicadores. O café em porção única (no caso, o stick foi avaliado, não a cápsula) tem um desempenho ambiental consideravelmente melhor em todos os indicadores por causa dos desperdícios de café e água quente nas demais alternativas".
"Uma redução dos impactos ambientais relevantes somente poderá ser atingida se aspectos indiretamente influenciados pela embalagem forem tomados em consideração".
"Assim, a indústria de embalagem deveria não apenas melhorar os seus processos de produção, mas também oferecer embalagens cujas funcionalidades ajudem a reduzir outros impactos ambientais mais relevantes no ciclo de vida, como, por exemplo, as perdas e os desperdícios".
"Uma porção individual evita desperdícios, poupando os recursos gastos sem necessidade na produção e no preparo de um café que não será consumido."
4.3. A ACV da Quantis
"A ampla adoção pelos consumidores norte-americanos de sistemas de café por doses individuais pode ser visto como uma oportunidade para limitar o desperdício de café, apresentando assim benefícios ambientais significativos".
"Benefícios adicionais poderiam ser alcançados com o desenvolvimento de máquinas de café com maior eficiência energética e vida útil prolongada."
"O sistema de café por dose única gera mais resíduos de embalagens. No entanto, ao considerar os ciclos de vida inteiros de cada sistema, os recursos necessários para compensar os desperdícios de café e eletricidade na preparação são os fatores que ditam as diferenças de impactos."
"De um modo geral, o sistema expresso por dose única apresenta um melhor desempenho ambiental do que o café coado".
Gráfico resumindo os resultados do estudo da Quantis, 2015. |
"Esta vantagem do café em cápsulas é atribuível a três principais pontos:
- O comportamento do consumidor típico que prepara café coado em excesso e desperdiça;
- A maior retenção do frescor do café nas cápsulas e, consequentemente, as menores perdas de produto;
- O desperdício mínimo de café com cápsulas que oferecem uma solução de dosagem exata, mesmo que com mais embalagens."
5. O principal mercado consumidor de café: a pia!
O principal mercado consumidor de café? |
As três avaliações de ciclo de vida citadas destacam o desperdício de café coado feito pelo consumidor. Mas será que desperdiça mesmo tanto assim?
Sim! O desperdício é tanto que profissionais do setor costumam apontar a pia como o maior mercado consumidor mundial. Se você fizer parte da minoria que não desperdiça, basta, para se convencer, observar o seu entorno, a casa de familiares, amigos, colegas, ou mesmo a copa da sua empresa.
Quando se joga café fora no fim da cadeia, não se joga apenas o café em si, mas sim todos os recursos dispendidos na sua preparação, desde a terra usada para a sua produção até a energia usada para o aquecimento da água.
Campanhas de educação do consumidor constituiriam uma forma inteligente e correta de investimento ambiental porque atacariam diretamente o ponto de maior impacto, o hotspot da cadeia.
Infelizmente, por ser muito técnico e pouco emocional, por criticar o próprio comportamento do consumidor e não apenas um objeto industrial, um programa de conscientização sofrerá para conseguir o mesmo alcance que um movimento demagogo como o Kill the K-Cup. Por isso, soluções técnicas que obrigam o consumidor a desperdiçar menos, como sistemas de dose única, são certamente mais eficazes.
Seguindo esta lógica, a adoção em massa de máquinas expresso domésticas deveria provocar uma redução importante do desperdício de café e, portanto, uma queda nos volumes de produção agrícola. E é exatamente isso que está ocorrendo!
O ralo da pia da cozinha! |
Este artigo da UOL, intitulado 'EUA: produtores de café são prejudicados pela revolução das cápsulas', publicado em abr/15, explica o fenômeno: "o mercado de café perdeu o seu maior consumidor, a pia da cozinha!"
As máquinas de doses únicas tiveram um impacto significativo sobre os volumes de venda no varejo nos últimos anos. Com exceção das cápsulas, as vendas despencaram em todas as categorias, do café moído ao instantâneo.
Esta tendência prejudica os produtores de café que vem a demanda cair. No entanto, é bom para a indústria e o varejo. Se em 2015 as cápsulas representavam apenas 12% do café vendido em lojas nos EUA, já representam 36% em receitas. E é bom também para o meio ambiente.
6. As cápsulas e os demais resíduos do consumo de café
Como vimos, várias avaliações de ciclo de vida já mostraram que os resíduos das embalagens de café não tem grande relevância ambiental.
Por isso, deveríamos dedicar os esforços a educar o consumidor, a aumentar a produtividade dos processos agrícolas ou a melhorar a eficiência energética das cafeteiras. No entanto, para não frustar as expectativas, podemos examinar este tema dos resíduos.
Primeiro, há de notar que resíduos são produzidos ao longo de todo o ciclo de vida do café, começando pelos resíduos agrícolas. E as cápsulas não são, de longe, os únicos ou os mais representativos do ciclo, mesmo considerando apenas os resíduos de embalagem.
Segundo dados da Quantis, por exemplo, uma embalagem cartonada com 12 cápsulas tem aproximadamente o mesmo peso que as 12 cápsulas nela contidas. E segundo Humbert et al., a caixa de papelão e o filme stretch necessários para transportar embalagens de café até o seu local de envase pesam cerca de 80% a mais do que estas próprias embalagens, isso sem nem contar os paletes.
Empilhadeira carregando um caminhão com produtos paletizados |
Aliás, mesmo que muito visíveis, as cápsulas não são nem os principais resíduos domésticos. Para cada 1 kg de cápsulas descartas, cerca de 5 kg de borra úmida são também descartados, os valores exatos variando de acordo com o tipo de café e cápsula.
E se for optar pelo café coado, haverá mais de 2 L de café descartado (resíduo/efluente líquido) para cada 1 kg de borra úmida, isso considerando apenas 20% de desperdício.
Assim, contrariando algumas percepções sobre o café:
- A geração de resíduos de embalagens primárias é muito inferior à geração dos demais resíduos domésticos do processo;
- O sistema com cápsula gera menos resíduos/efluentes que o sistema convencional de café coado, mesmo considerando desperdícios mínimos.
Além disso, por uma mesma unidade de peso, os resíduos de café geram mais impactos ambientais que os resíduos de embalagem. Por não ser inerte, a borra sofre lixiviação e se degrada parcialmente em gases de efeito estufa, mesmo se for compostada.
7. A difícil revalorização das cápsulas pós-consumo
Quase todos os resíduos de produção das cápsulas são reciclados, independentemente do seu tipo e em todas as partes do mundo. Já, ainda poucos resíduos pós-consumo destas mesmas cápsulas são reciclados nos países desenvolvidos, e quase nenhum em países como o Brasil. Por quê?
A explicação é técnico-econômica. Reside em dois principais fatores que, neste caso, tornam a reciclagem pós-consumo particularmente árdua:
- O espalhamento domiciliar das cápsulas;
- A borra de café que fica dentro da embalagem.
O primeiro ponto implica conectar milhões de consumidores com alguns poucos centros de processamento, algo que requer altos níveis de educação e complexos sistemas logísticos, ou seja, padrões de primeiro mundo.
Para abordar o segundo ponto, convém distinguir entre dois tipos de cápsulas, as de plástico, como da Dolce Gusto, e as de alumínio, com da Nespresso.
Para abordar o segundo ponto, convém distinguir entre dois tipos de cápsulas, as de plástico, como da Dolce Gusto, e as de alumínio, com da Nespresso.
8. A reciclagem das cápsulas de alumínio
Como se baseia em um processo térmico, e não mecânico, a reciclagem de cápsulas de alumínio pós-consumo pode parecer simples. Bastam integrar o modelo de sucesso das latas de alumínio, certo? Infelizmente, isso não é viável.
A borra de café geraria muito vapor d'água nos fornos das fundições e, portanto, explosões. Além disso, geraria muitos fuligens e prejudicaria demais a pureza do alumínio reciclado. Por isso, tem que remover a borra até níveis aceitáveis pelas fundições. E isso implica um processo industrial específico que não é tão simples. Aliás, mesmo removendo o filtro e toda a borra de dentro das cápsulas, a qualidade do metal obtido já é parcialmente comprometida pela tinta e outros contaminantes secundários.
Mas as cápsulas de alumínio podem ser processadas com a borra em fornos de pirolise, como acontece na Alemanha. Esta cadeia, no entanto, existe somente em alguns poucos países, não no Brasil.
Reciclagem das cápsulas de alumínio na Alemanha por pirólise.
Fonte: Nespresso.
Uma avaliação de ciclo de vida realizada pela Quantis em 2011 mostrou que as cápsulas de alumínio trazem menos impactos ambientais que outras opções, mas somente se forem recicladas. Senão, as cápsulas plásticas apresentam um balanço melhor.
9. A reciclagem das cápsulas plásticas
Exemplo
da estrutura de uma cápsula de café K-Cup: relativamente pequena e complexa. |
A reciclagem mecânica das cápsulas plásticas passa necessariamente pela separação dos seus principais componentes, ou seja, a borra de café, o pequeno filtro interno e a embalagem a propriamente dito.
Como os elementos são pequenos, esta separação é difícil. Além disso, é praticamente inviável separar as tampas dos potes, componentes cujas estruturas internas ainda variam de acordo com cada modelo de cápsula. A mistura de materiais é inevitável. Isso limita e prejudica a qualidade dos materiais reciclados e, portanto, o seu valor comercial. O produto final não paga o processo.
A ponta de uma máquina específica para separar a borra da embalagem. Fonte: Nespresso. |
A reciclagem pós-consumo das cápsulas não tem viabilidade de mercado. Funciona só se for financiada. Mas sustentar artificialmente este tipo de programa faz mesmo sentido em termos ambientais? A resposta não é simples.
8. Reciclar, mas pelo direito de operar
Reciclar é um processo industrial como outro. Requer água, energia, transporte e insumos. Gera efluentes, emissões e resíduos. O fato de um processo de reciclagem ficar muito longe da auto-sustentação financeira constitui um indício que pode também não se justificar ambientalmente.
Não encontramos avaliações de ciclo de vida sobre a reciclagem mecânica das cápsulas de café. Porém, neste caso, a grande especifidade de qualquer programa neste sentido, a sua complexidade logística e o baixo valor agregado dos produtos finais não jogam a favor da reciclagem, ainda menos no contexto brasileiro. Assim, é provável que este tipo de processo subvencionado apresente um balanço ambiental negativo, ou seja, que gere mais impactos do que benefícios. Se for o caso, a reciclagem irá piorar o quadro ambiental do sistema produto-embalagem.
Tecnicamente, qualquer resíduo pode ser reciclado. Mas reciclar simplesmente por reciclar não faz sentido. Não deveria ser um fim em si só. Há de trazer vantagens tangíveis, claramente superiores a outras formas de destinação.
A famosa 'hierarquia da gestão de resíduos' prioriza a redução e coloca o aterro como última alternativa. Porém, há casos em que esta hierarquia não se sustenta. A diretiva europeia de 2008 sobre resíduos (art. 4.2), por exemplo, prevê tais situações e a sua explicação por raciocínios de ciclo de vida (Lazarevic et al., 2012).
Nos países com os mais avançados sistemas de gestão de resíduos, como a Suécia, a Suíça ou a Alemanha, os resíduos de mais difícil reciclagem são raramente reciclados. Os recursos dispendidos não justificariam os ganhos. Em vez disso, sachês individuais de ketchup ou maionese, tampas de iogurte e cápsulas plásticas de café (com borra) costumam gerar energia.
A famosa 'hierarquia da gestão de resíduos' prioriza a redução e coloca o aterro como última alternativa. Porém, há casos em que esta hierarquia não se sustenta. A diretiva europeia de 2008 sobre resíduos (art. 4.2), por exemplo, prevê tais situações e a sua explicação por raciocínios de ciclo de vida (Lazarevic et al., 2012).
Nos países com os mais avançados sistemas de gestão de resíduos, como a Suécia, a Suíça ou a Alemanha, os resíduos de mais difícil reciclagem são raramente reciclados. Os recursos dispendidos não justificariam os ganhos. Em vez disso, sachês individuais de ketchup ou maionese, tampas de iogurte e cápsulas plásticas de café (com borra) costumam gerar energia.
Uma empresa como Nestlé está perfeitamente ciente disso. Aliás, possui um dos melhores programas de sustentabilidade empresarial do mundo. Por que então investe em programas de reciclagem tecnicamente questionáveis e de pequeno alcance, como da Dolce Gusto com a TerraCycle? Já pensou em gerenciar resíduos por correio!? A resposta não é técnica. Reside no que se pode chamar de 'direito de operar'.
Uma parte importante da sociedade ainda não consegue raciocinar em termos de ciclo de vida. Em vez de exercer o seu poder de pressão onde realmente importa, como nos processos produtivos do café ou do alumínio, simplesmente exige a reciclagem do que passa na sua frente. Pode não ter sentido técnico, mas tem todo o peso da opinião pública.
É neste contexto que pequenos programas de reciclagem subvencionados se justificam. Por mais duvidosos que sejam em termos ambientais, aliviam a pressão leiga e permitem seguir com a melhor opção técnica, ou seja, as cápsulas.
No entanto, vale refletir sobre as consequências educacionais deste tipo de programas. Se neste caso evitam grandes choques de opinião por uma causa nobre, contribuem também à propagação de conceitos simplistas, incorretos.
De alguma forma, estes programas iludem parte da população, reconfortam ideias falsas sobre embalagens e retroalimentam a falácia da reciclagem a qualquer custo. Às vezes qualificados de pedagógicos, será que não ajudam ao contrário a perpetuar sofismas cujos desdobramentos podem ser particularmente perversos?
9. O aterro das cápsulas pós-consumo no Brasil
A gestão da borra do café coado, geralmente descartada junto com o filtro usado, nunca despertou interesse popular. A compostagem caseira é irrisória e a borra sempre seguiu quase exclusivamente para lixões ou aterro. Isso nunca perturbou a opinião pública brasileira.
Por que então, com a cápsula, a questão do aterro se tornaria de repente relevante?
Não há nenhum embasamento técnico para isso. Ao contrário, conforme já vimos, o volume de resíduos sólidos é menor com a solução por cápsulas:
- O volume da cápsula em si é baixo, menos de um terço do volume total com borra;
- O volume de borra é maior com o café coado que com o café em cápsula;
- Para uma mesma quantidade de resíduos aterrados, a borra gera mais impactos do que embalagens inertes.
Aliás, contradizendo mais uma vez alguns pensamentos, o volume total dos resíduos de cápsula está longe de ser assustador. Há de lembrar que as cápsulas representam apenas uma pequena parte das embalagens, e que estas embalagens representam apenas cerca de 30% dos resíduos sólidos urbanos, e que estes resíduos representam apenas cerca de 10% dos resíduos totais gerados por atividades econômicas e agregados familiares.
Proporção de resíduos por atividades econômicas e agregados familiares, UE-28, 2012. No Brasil, não há estatísticas confiáveis sobre estas proporções, mas são provavelmente similares. |
A previsão da ABIC de 19 mil toneladas de cápsulas consumidas no Brasil em 2019, por exemplo, equivale a um volume de resíduo pós-consumo que caberia em um cubo de 50 m de lado. Mesmo divido entre mais de 5.500 municípios, isso ainda pode ser interpretado como bastante, mas certamente não como preocupante.
Ao contrário do que acontece com resíduos orgânicos, dispor materiais inertes (como embalagens plásticas ou de alumínio) em aterros sanitários não causa contaminação, nem efeito estufa. De certa forma até restituí materiais ao subsolo.
E se constitui um desperdício de material, conforme já vimos anteriormente, essa ineficiência do sistema representa pouco em relação aos impactos da produção e da preparação de café.
Como em muitos países em desenvolvimento, a grande prioridade na gestão dos resíduos sólidos urbanos do Brasil deveria ser a eliminação completa do ilegal despejo em lixões, sua substituição por aterros sanitários e a universalização da coleta municipal. Hoje, ainda é muito longe de ser o caso.
Um dos lixões de Brasília, em 2012
|
Sem o estabelecimento destes sistemas de saneamento básico, resíduos continuarão fontes de poluição, contaminando subsolos e espaços marinhos.
Ações adicionais podem andar em paralelo. Porém, enxergando este quadro de ações como outra hierarquia de gestão dos resíduos, o estímulo à reciclagem deveria vir apenas em segundo lugar; e deveria sempre começar pelos resíduos de maior reciclabilidade, ainda mais em um país onde bons investimentos fazem cruelmente falta.
10. Conclusões
As embalagens de café em geral cumprem a nobre função de proteger um produto valioso. Nisso, os sistemas de dose única apresentam um desempenho melhor que o café coado e, portanto, trazem benefícios ambientais.
Quanto aos resíduos pós-consumo das cápsulas, apesar de muito visíveis para o consumidor final, representam na realidade impactos muito modestos. E a sua reciclagem pode ser mais prejudicial do que a sua mais simples disposição em aterros, o que, infelizmente, ainda não se tornou realidade para um terço ou mais dos resíduos brasileiros.
Estas explicações podem não agradar. Primeiro, tendem a desculpar o principal acusado, o novo inimigo público número um, 'o vilão das cápsulas'. Relativamente técnicas, difíceis de explicar e assimilar, ferem emoções e mexem com pré-conceitos. E claramente, não tem o charme vanguardista dos discursos da economia circular ou das inovações ambientais disruptivas.
Obviamente, mesmo se o sistema por cápsula trouxe benefícios, ainda deve ser melhorado. Mas antes de defender ou condenar qualquer alternativa, todas as evidências devem ser avaliadas, sem ideologismo e sempre com rigor científico.
Obviamente, mesmo se o sistema por cápsula trouxe benefícios, ainda deve ser melhorado. Mas antes de defender ou condenar qualquer alternativa, todas as evidências devem ser avaliadas, sem ideologismo e sempre com rigor científico.
Enquanto isso, keep calm e aprecie com moderação!
Referências
Büsser, S e Jungbluth N. The role of flexible packaging in the life cycle of coffee and butter. International Journal of Life Cycle Assessment, Vol. 14, p.80–91, 2009.
Humbert S., et al. Life cycle assessment of spray dried soluble coffee and comparison with alternatives (drip filter and capsule espresso). Journal of Cleaner Production, Vol. 17, p. 1351-1358, 2009.
Lazarevic et al. The application of life cycle thinking in the context of European waste policy. Journal of Cleaner Production, Vol. 29, p. 199-207, 2012.
Quantis. Life cycle assessment of coffee consumption: comparison of single-serve coffee and bulk coffee brewing, 98 p., 2015.
Williams, H e Wikström, F. Environmental impact of packaging and food losses in a life cycle perspective: a comparative analysis of five food items. Journal of Cleaner Production. Vol. 19, pp. 43-48, 2011.
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Teddy Lalande. Janeiro, 2017.
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